segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Era assim antigamente

Corria o ano de 1965. Os casamentos religiosos eram, ainda, a maioria dos que então se realizavam. Contrair matrimónio apenas pelo "civil" era mal visto. Tanto, quanto os divórcios, engeitavam mulheres e filhas. De facto, estas encontravam bastante dificuldades em serem aceites na sociedade da época, pese embora nada terem feito que tal justificasse.
Foi neste ambiente que Aurora viu o seu marido abandonar o lar. A razão por que o fez está, ainda hoje, longe de ser clara. Outra mulher? Cansaço? Desinteresse? Ânsia de liberdade? Ninguém sabe. Só o Zé que, aliás, nunca o confessou.
O casal tinha duas filhas já maiores. Uma casada a outra solteira, acabadinha de sair da Universidade. Por isso o pai já não necessitava de autorização materna para estar com os rebentos.
Mas Aurora não fora educada para ser uma mulher abandonada. Assim, quando o Zé lhe pediu a separação judicial, não lha deu. Ao menos continuava casada, pensava Aurora.
Mas havia que contar com as más línguas e os olhares da vizinhança, que não deixariam de reparar na ausência do Zé por aquelas paragens. Portanto, era urgente encontrar uma solução.
Um dia, saíu de casa e voltou com duas mudas completas de roupa interior masculina. A qual, a partir de então, passou a ser molhada todos os dias e alternadamente estendida nos varais da casa.
Todos os dias até à revolução do Ministro Salgado Zenha, que acabou por permitir ao Zé que se separasse da Aurora, mesmo contra vontade dela.
Finalmente a roupa deixou de estar estendida no varal. Mas Aurora continua, ainda hoje, com noventa anos, a usar aliança no dedo anelar esquerdo e a assinar o nome do marido.
Era assim antigamente...

Helena

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A francesa

Rosa era uma bela moçoila, minhota, de sorriso sempre na boca. As faces rosadas e o olho azul denotavam bem a influência das tropas de Junot pelas bandas onde nascera. Aproveitando-se dessas características, costumava dizer que era francesa. E os de fora acreditavam quando ela embrulhava o português para se dar mais ares de ser estrangeira. Aliás, os primos que trabalhavam na cidade luz, com os quais convivia nas "vacâncias", haviam enriquecido muito o seu vocabulário, o que lhe permitia dar um toque mais realista à versão das suas origens.
Não era rica nem pobre. Apenas entendia que a vida devia ser vivida da melhor maneira. E, para ela, a melhor maneira era ter dinheiro. Por isso, decidira que havia de "catrapiscar" um marido rico, daqueles que existiam nas grandes capitais. As amigas riam-se imenso desta sua história. Mas Rosa trabalhava para que ela se tornasse real.
Não era muito letrada nem muito interessada nas coisas do espírito. Mas considerava que o seu património físico justificava que o sonho se realizasse. E realizou. Corporizado no Tiago que era rico e de boas famílias. Pouco inteligente, guiva-se mais pelas curvas das mulheres do que pelas rectas da vida. Por isso escolheu Rosa. E levou-a para França.
Casaram. Tiveram filhos. Como quase toda a gente. Um dia, como acontece a muitos, o Tiago trocou-a. Por outra bem portuguesa. Morena de olhos negros e cabelo como o tição. E a Rosa foi à vida. Ou seja, voltou à terra donde saíra, para perceber que afinal não valia a pena ser francesa!
Helena

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A dívida

Era um petiz desengonçado, com dificuldade em coordenar os movimentos. Nem bonito nem o oposto. Antes, uma cara que passava despercebida. Virou, sem surpresas, o patinho feio da família e também o dos colegas, que mostravam pouca paciência para as suas inabilidades. Foi, assim, crescendo um pouco à margem da gente da sua idade. Francisco sofria, mas não mostrava!
Ao entrar na juventude tuberculizou. O que o afastou ainda mais do meio familiar, visto que teve de ser internado num sanatório. Onde, por uma macabra sorte, a sua vida mudou por completo.
Foi lá que encontrou Teresa, atacada do mesmo mal. Foi a sua primeira amiga e seria, depois, o seu primeiro grande amor. Tudo na vida de Francisco mudou. Interessou-se pelos estudos, lutou com todas as suas forças contra o mal que o invadia, deixou de se sentir solitário e sentiu-se, de facto, entre os seus. Percebia, finalmente, o que era ter uma família.
Decorrida meia década, foi dado como curado. Podia, finalmente, encarar a sua entrada na Universidade.
Ao invés, Teresa piorava. Tanto que ele retardou, quanto lhe foi possível, a sua saída da casa de saúde. Seria na última noite que passou no sanatório que se deu o desenlace. Teresa morreria nos seus braços.
Cheio de força, contrariando o que ele próprio sempre pensara que aconteceria, não chorou. E, com as mãos geladas da mulher amada entre as suas, prometeu-se viver pelos dois.
Cumpriu. Vinte anos decorridos sobre esta data, doutorava-se em medicina, com uma tese inovadora sobre a tuberculose. No princípio dessa tese podia ler-se, "Uma pequena homenagem à Teresa, a melhor Mulher que eu conheci"!

Helena

terça-feira, 26 de outubro de 2010

A vida tripla

Eu sei muito bem o que é ter várias vidas, pensou Jorge enquanto via os carros passar naquele jardim onde costumava ficar a ler. Era no Príncipe Real. Num canto os reformados jogavam à sueca à volta de uma mesa desmontável. Perto, num banco, duas velhotas apreciavam a juventude apressada e faziam comentários. Noutro banco, uma jovem lia uma revista, com ar de quem não tinha emprego e não sabia o que fazer ao tempo. Mais adiante um grupo discutia à volta do balcão do quiosque os resultados do futebol e percebia-se bem que não eram todos do mesmo clube.
Finalmente eu, um híbrido social, como tantos que pululam entre nós, discorria sobre a sua plural existência. No Alentejo onde passava de sexta a Domingo era o Senhor Engenheiro. Vivia bem porque a Cristina, a mulher legítima, era herdeira de um abastado património. Em Lisboa era o Senhor Santos, com uma pequena casa na Almirante Reis que lhe ficara de uma avó com quem sempre vivera.
E, de vez em quando, no Porto, era o Jorginho, quando se entregava, uma vez no mês, nos braços da Maria Eugénia, que o considerava caixeiro viajante e o dava publicamente como marido.
Pois bem, esta mordomia de personagens ia acabar. Quer Cristina, quer Eugénia queriam vir para Lisboa viver com ele, que não sabia como descalçar esta bota. Tanto mais que, na pouca vizinhança conhecida, todos o tinham como viúvo.
Era nisto que Jorge pensava de há uns dias para cá. Sem conseguir encontrar uma solução, levantou-se e caminhou um pouco. Tinha que contar a verdade a uma delas. Não havia qualquer outra solução. Mas não tinha coragem para eleger a qual delas se iria confessar.
De repente, vindo não se sabe donde, um silvo de travagem, um empurrão brutal, gritos e um carro a colhê-lo na passadeira.
Ainda se lembra da gente à sua volta, da sirene da ambulância e de pensar... que a Cristina e a Eugénia se estavam a rir imenso dele...

Helena

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O especialista em divórcios

Esta história é verídica e estão vivos todos os seus intervenientes. É caso para dizer que, por vezes, a realidade supera a ficção.
Chamo-me Frederico e tenho cinquenta e cinco anos. Costumava dizer, bem vividos. Hoje, já não digo. Porque, julgo, terei, afinal, cometido bastantes falhas. Na vida profissional até sou bem sucedido. Na vida pessoal é que as dúvidas começam.
Os meus pais divorciaram-se tinha eu, talvez, nove anos. O embate, sei-o agora, foi enorme. Se os meus pais me usaram como arma de arremeço entre os dois, também não me isento dos jogos que fiz, aproveitando-me da situação. Foi ela por ela. Mas sofri mais do que teria gostado que tivesse acontecido. E, jurando que tal nunca me aconteceria, acabei por fazer pior. Sou especialista em divórcios.
Vou contar como tal aconteceu. Casei muito cedo, contra vontade dos meus pais. Mas como era maior, aos 20 anos passava pelo Registo Civil, para dar forma e nome ao amor. Que durou quatro anos, mas de modo intermitente.
O divórcio acabaria por ser pago pela minha mãe que sempre entendeu que as situações reais deviam corresponder às situações legais. Tinha razão. Por isso, nunca mais casei. Fiquei-me pelas uniões de facto com as várias mulheres com quem vivi.
Seguiram-se várias relações que não refiro porque não fizeram história. Mas por volta dos vinte e oito anos conheci a Isabel. E o laço que nos uniu foi forte. Durou cerca de nove anos.
Mas ela, aos trinta e oito, queria ser mãe. Eu, pelo contrário, não estava interessado em ser pai. Até porque, mantinha já há cerca de ano e meio, uma relação com a Vitória, uma garota moderna que tinha menos uma década que eu.
Decidi, então, acabar com a Isabel. Mas demo-nos uma última chance nuns dias de férias no estrangeiro. A viagem correu mal. Não havia, afinal, nada a salvar.
Mas quando iamos no avião para Londres, algo se incendiou, de novo, entre nós. Não me perguntem como foi. Foi mesmo assim. O que fez com que parássemos na capital inglesa por dois dias. Julgo que terá sido nessa altura que o meu primeiro filho, o Diogo, foi feito.
De volta a Lisboa o retomar da vida em comum não correu bem. Vitória fez tudo para ficar comigo. E eu cedi. Saí de casa, tinha a gravidez de Isabel uns seis meses. Não foi bonito. E, talvez porque isso me penalizasse, disse que quando a criança nascesse eu volaria para casa por uns meses para ajudar nos primeiros tempos do meu rebento. E aconteceu assim.
Só que ver cá fora um filho apesar dele não ter sido planeado, acabou por me levar a perguntar se Vitória valia mesmo que eu perdesse o crescimento de Diogo. Ou seja, comecei com dúvidas. E achei que queria estar com o filho e a mãe.
Assim, decidi acabar com a Vitória. Saímos para jantar e, para evitar subir a sua casa, ficámos um bom bocado no carro à sua porta. Eu tentava, mal, explicar-lhe as minhas razões.
Foi o meu azar. Enquanto isso acontecia, a Isabel passou no local e reconheceu o meu carro. Quando cheguei a casa tinha as malas feitas. Duma penada ficara sem as duas mulheres, sem o filho e sem casa...
Passaram alguns meses e eu que sou comodista voltei para a Vitória. Que, uns tempos depois, engravidou do meu segundo filho, o Tiago. Vivemos juntos mais seis anos da minha vida. Até que voltei a separar-me. E a encontrar, meses depois, a Maria, uma amiga que conhecera anos atrás. Desta vez pegou e passaram mais cinco anos.
Acabo de me separar. Mas sou um homem de sorte porque todas estas mulheres gostam muito de mim. E eu delas, é evidente!

Helena

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Uma vingança curiosa

Casaram-se no meio de grande surpresa, talvez porque ele fosse bastante mais novo do que ela. Mas estavam apaixonados e isso era o que importava. Ela tinha quarenta. Ele quase trinta. Foram felizes. Durante quase dez anos. Pelo menos era o que ela sentia. E o que ainda hoje sente.
Mas esse sexto sentido tão feminino, um dia deu-lhe sinal. Alertou-a. Não que fossem coisas significativas. Apenas pequenas mentiras. Mas que se repetiam, sem a mínima necessidade. Foi essa gratuita repetição que começou a perturbar Joana. Ela, que embora soubesse que Manuel não era nenhum santo, estava longe de acreditar que ela a pudesse, alguma vez, pôr em causa. Mas foi justamente isso que aconteceu. E um dia Manuel foi-se embora. Cansado dela ou apaixonado por Cecília. Nunca saberia.
O mundo seguro de Joana desabou. O divórcio foi terrível. E ela ficou com o sabor amargo de uma vida que se desfaz aos cinquenta anos.
Fez análise. E foi através dela que percebeu que precisava de se "vingar". Estranho, num processo analítico. Mas verdadeiro. Joana precisava de voltar a tê-lo nos seus braços. Mesmo que pagasse muito caro por isso. Estava mesmo disposta a pôr-lhe no bolso um envelope com vinte euros e um cartão a dizer "preço justo". Assim, as contas ficariam saldadas. As lágrimas, as dores, as ânsias e as angústias seriam liquidadas. Por uns humilhantes vinte euros...
Mas a vida prega partidas. Cinco anos passaram e o encontro deu-se no Porto. Tão inesperado quanto explosivo. Porque era de amor e de vingança que se tratava.
O retorno foi silencioso. E à despedida Joana não fez o que tinha pensado. Resolveu esperar. Manuel voltou. Várias vezes. Agora, tornava à casa que, antes, fora dele também.
Foram sempre bons os encontros. Talvez porque Joana sabia que, um dia, a mulher que lho roubara haveria de saber que ele tornara. E soube, de facto...
Além do mais, cada vez que estavam juntos, além do prazer que tinham, era um prazer que a "outra" perdia!
Quando Joana sentiu que o tempo de expiação terminara, acabou. Tão inesperadamente como havia começado. Mas, finalmente, curada e de contas acertadas. Haverá algo mais prazenteiro do que servir aos outros o prato que nos serviram?!
Helena

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Ser diferente

Carlos foi tomando conhecimento de que era diferente. Só que não percebia onde estava essa diferença. Não se interessava por guerras, bandidos ou ladrões, que eram os temas predilectos dos colegas da escola.
Em casa o pai chamava-lhe nomes e dizia que tinha jeito de mulher. Fazia-o para o espicaçar, mas também para o ofender. Contudo, ele não se ofendia. A mãe, ao contrário, tentava percebê-lo. Punha-lhe questões. Sabia, intuía que o facto de ele "ser diferente" seria, sempre, algo de muito doloroso.
Um dia, por volta dos seus treze anos, Carlos sentiu que o que o ligava a Pedro era bem diverso daquilo que o unia a outros amigos. E ficou alarmado. Primeiro, porque era um sentimento novo, desconhecido, com que lhe era difícil lidar. Depois, porque não fazia a mínima ideia se era, ou não, retribuído. E, além disso, tinha receio de contar o que sentia por medo de não ser entendido. Depois, ainda, porque não sabia lidar com a sexualidade decorrente desses sentimentos.
Foram meses e meses de sofrimento. De dúvidas. De forte sentimento de culpa. De auto reprovação. De tentativas, até, de encontrar raparigas por quem se interessasse. Tentativas goradas, como se pode calcular. E mesmo traumatizantes.
Encorajado pelo irmão mais velho e pela mãe, os únicos que o compreendiam, decidiu ganhar coragem e confessar ao amigo o que sentia por ele. Não foi correspondido. Mas foi compreendido.
Pedro era heterossexual. Mas também era um jovem do seu tempo. Não ficou surprendido nem incomodado. Por isso, foi com naturalidade, que lhe confessou que apenas gostava de mulheres.
A experiência resultou triste. Mas não traumatizante. Um dia havia de chegar alguem que o fizesse feliz. Hoje Carlos tem 35 anos. Vive há cinco com o mesmo homem. Não pretende casar, nem isso lhe interessa. Filhos? Um dia, talvez. Mas, curiosamente, nunca esqueceu Pedro!
Helena

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Amores

Há amores que perduram. Outros que acabam. Outros, ainda, que se transformam.
Há amores sexuais. Há amores filiais. Há amores maternais. Há amores fraternais. Enfim, há os amores mais diversos.
Era isto que Isabel pensava, naquela sala de espera do consultório. Era por causa desses afectos complicados que ela ali estava, pontualmente, às segundas e às quintas de todas as semanas dos últimos quatro anos.
O ritual era empre o mesmo. O analista raramente lhe fazia perguntas. Só quando receava não ter percebido o que ela dissera. E ela nem sempre se sentia com capacidade de falar. Mas, fosse qual fosse o seu estado de espírito, fosse qual fosse a conversa ou o silêncio, os cinquenta minutos que lhe eram dedicados marcavam a sua hora de saída.
Nessa tarde, mal se sentou, começou a falar. Queria perceber que tipo de sentimento a ligava a um homem de quem se separara por vontade própria, de quem já não gostava, de quem não tinha filhos, mas de quem se não conseguia, afinal, libertar.
É insano, dizia. Como posso pensar, lembrar-me, ter presente no meu espírito alguém que nada tem a ver comigo senão um triste passado. Porque é que isto me acontece? Que tipo de laços são estes e a que género de patologia é que eles estão ligados?
Será que isto me passará quando eu encontrar alguem que mate estas lembranças? Mas como, se as lembranças são todas tão más? Será que o desprezo que sinto por este homem com quem partilhei tantos anos, não chega para o apagar dentro de mim?
Será que, no fundo, tudo o que sinto, são ainda manifestações de um relacionamento que eu renego? Mas se é assim, como é que eu vou libertar-me dele e de mim para me abrir a algo que seja verdadeiramente regenerador? Ou não tenho, mesmo, cura?
O médico sorriu. Parecia satisfeito quando lhe disse "até quinta feira, à mesma hora"!

Helena

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Coup de foudre!

Nunca se sabe a razão dum coup de foudre, aquele estranho e paralizador sentimento que faz com que quase deixemos de ser nós, para passarmos a ser o outro. Uma espécie de fusão de materiais desconhecidos que se misturam por razões que desafiam não só a lógica, como a própria ciência.
Foi o que aconteceu. Ali estava Cristina a casar-se, numa cerimónia civil, com o homem da sua vida, quando os seus olhos se cruzaram com os do representante da autoridade.
Também Nicolau, o oficiante encarregado de legitimar a união, estava quase paralizado, preso daquele olhar, sem que lhe saíssem da boca as palavras adequadas à ocasião e circunstância. Foram momentos de suspense até que, com uma voz que mal se ouvia, ele os declarou marido e mulher. Com a certeza, contudo, de que aquela mulher só seria dele.
Tão convencido ficou que os meses, os anos, que se seguiram, mais não foram que motivos para se encontrar com Cristina. Que, claro, não deixou de corresponder...
Dois filhos haviam, contudo, de nascer do matrimónio, antes que este se desfizesse. Mas o amor louco, o tal golpe fatal que os atingira iria, finalmente, tomar forma.
Cristina separou-se e casou com aquele que antes validara a sua união. Durou dezasseis anos o novo casamento. Mas foi por outro coup de foudre que ele se haveria de dissolver...
Há pessoas que amam assim!
Helena

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Explicação

Escrever é assim. Pelo menos comigo. Há alturas em que começo e vou por aí. De rajada saem textos. Depois preciso parar.
Agora estou nessa fase. De paragem. Qualquer dia recomeço. Até pode ser já amanhã. Ou na semana que vem.

Helena

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Um olhar

"Era ali.
Talvez porque existam muitos livros ou porque a noção de História se insinue permanentemente, entrelaçada com o discreto som de um piano.
Ou ainda pelo perfume da madeira encerada suavemente.
Era ali, depois da ascensão carmim, segurando um cálice ou remexendo as folhas, que os nossos olhos se encontrariam".

Há textos que nos lembram fases da vida ou episódios semelhantes pelos quais tenhamos passado. Li estes parágrafos e, como se entrasse numa máquina do tempo, lembrei-me. Primeiro de mim. Adolescente insegura, um pouco solitária, mas em compensação, ávida de perceber o mundo que me rodeava. Depois dele, o meu contrário. Já não adolescente, mas jovem seguro de si e do impacto que nos outros causava, lindo como era. E inteligente, numa mistura injusta para todos os que a não tinham tais predicados ou que apenas de um deles gozavam.
Durante meses vi-o nos claustros da Faculdade e julgo que terá sido então que me terei apaixonado. Digo julgo porque, hoje, já duvido muito de paixões sem diálogo. Mas ao tempo, como eu, muitas colegas minhas o terão cobiçado.
Um dia, numa queda, ele amparou-me. Foi quando os nossos olhos se cruzaram. E as nossas vidas também. Sem que nunca fisicamente nos tenhamos entregado, esta "estória" havia de me acompanhar até hoje. Morreu há muitos anos. Mas o retrato de um nosso abraço em terras distantes, continua bem presente numa mesa da minha sala.

Helena

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Aquela noite

"Logo que esteja tudo em ordem e tenha falado com os miudos, telefono-te. Penso que poderás voltar pelas 11horas da noite", disse-lhe Jaime, antes de desligar.
Natália ficou a olhar o aparelho como se esperasse alguma coisa mais, uma frase, um suspiro, um adeus, enfim, algo que não fosse aquela conversa natural, que, de tão natural, a exasperava...
Havia, pois, que passar o dia e parte da noite com alguem. De preferência uma amiga. Foi Maria a escolhida porque, de facto, ela era a pessoa que mais tinha acompanhado todo este doloroso processo. Quando a meia noite se aproximava, o telefonema chegou. Natália podia voltar para casa. E voltou.
Meteu a chave à porta. Estava tudo escuro. Nem um ponto de luz aceso. Foi ao quarto dos garotos que dormiam tranquilamente. Atirou as chaves e a carteira para a cadeira da entrada e entrou na sala.
O silêncio era total. Ao longe, pela janela, viam-se luzes. Atirou-se para cima do sofá e fechou os olhos. Nem uma lágrima deitou. Depois olhou em redor e percebeu que estava realmente só. Só, mas com dois filhos a entrar na adolescência, para educar.
O que é que eu vou fazer da minha vida? perguntava-se a si própria. Como é que eu vou aguentar?
Nunca um silêncio foi tão pesado, uma dor tão intensa, uma dúvida tão persistente, um desencanto tão magoado. Ela sabia que a vida continuava. Só não sabia como continuaria a dela, sem Jaime... Ficou, assim, parada, imóvel. Até a luz solar lhe bater nos olhos e a acordar de um sono que, na verdade, não chegara a existir.

Helena

terça-feira, 14 de setembro de 2010

A televisão...

Há história que contadas dão uma imensa vontade de rir. Mas isso não impede que possam ter custado muito caro a quem por elas tenha passado.
O Manuel era um sujeito calmo, apreciado tanto por homens como por mulheres. Os primeiros valorizavam o perfil discreto. As segundas, para além disso, sentiam que estava ali à mão de semear um ouvido sempre atento e uma pessoa da maior confiança. Contavam-lhe tudo. Desde as desavenças familiares, às rupturas maritais e algumas vezes, ao abrirem o seu coração, abriam também a porta do dito orgão vital. Para que pudesse ser tomado ou, pelo menos, partilhado.
A má da fita era sempre a Ondina, que se lamentava de que ele só tinha disponibilidade para os outros e se esquecia de quem tinha em casa. Claro que era verdade. Mas só era para ela. Os outros, esses, só conheciam o lado mavioso...
Daí que a desgraçada não tivesse, nunca, a atenção nem de homens nem de mulheres. Nem ouvidos para desabafar. Nem conselhos para receber. A excepção era só a sua mãe. Não pelo facto de sê-lo, mas porque conhecia a pinta do genro. Ela própria fora casada com uma pessoa do mesmo tipo.
Numa altura em que o sogro fora internado, o Manuel pediu-lhe para levar a televisão para o quarto do hospital, para o pai ficar mais acompanhado. Solícita, a Ondina disse que sim, embora estranhasse não a ter visto quando foi visitá-lo.
Inquirido, o marido disse-lhe que fora roubado e lha tinham tirado do carro. Não lhe dissera porque não quisera preocupá-la.
Meses mais tarde, na ausência de uma empregada, a sogra mandou-lhe a irmã da que trabalhava lá em casa, para lhe dar uma ajuda. Num fim de tarde, em conversa, antes de sair, a Clementina, disse-lhe: "minha senhora, desculpe, ando há tanto tempo para lhe agradecer e ainda não o fiz. Muito obrigada pela televisão que deu à Rosário. Não calcula o prazer que nos tem dado ver tudo em ecrã grande. Bem haja pelo presente"!
Helena

A marca...

A Elisa ainda hoje tem dificuldade em olhar para a marca. Por vezes chega a perguntar a si própria como pode alguem levar tanto tempo a esquecer alguma coisa. É que já lá iam vinte e tal anos e nada de olvidar aquela história.
Lembra-se bem. Já estava no segundo casamento. O marido, um apreciador do belo sexo, não lhe dava grande descanso. Mais jovem do que ela, não sendo uma estampa, sabia como encantar as damas à sua volta. Derramava ternura e afecto - durante anos tomavam as refeições quase sempre de mão dada - e a conversa ia sempre no sentido que mais lhe convinha. Elisa, aliás, sabia-o por experiência própria, uma vez que quando o conhecera o achara insignificante e seis meses depois estava casada com ele. Isso mesmo. Casada, não junta, como então se dizia!
E, de facto, foram as falinhas mansas que a levaram ao altar. Não popriamente ao altar, porque só casaram pelo civil, mas mesmo assim, ela que era mulher experiente, tinha ido na conversa.
Certa noite de Inverno, estavam ambos deitados a ler, quando Elisa, que folheava uma revista, lhe disse "esta nova marca nacional tem roupas bem bonitas. Pena é que seja tudo para exportação". João levantou os olhos do jornal, viu as fotos e, quase entre dentes, retorquiu "não é nacional. É francesa". Seguiu-se uma pequena conversa em que ela tentou convencer o marido de que este estava enganado. Mas João não saíu da sua, o que deixou Elisa incomodada.
Dormiu mal e de manhã voltou à carga, mas o consorte calou-a dizendo-lhe, agastado, "sei do que estou a falar. Não insistas".
Aí a campaínha do sexto sentido alertou-a. Sabia do que falava, logo ele que nem às compras ia com ela? Donde lhe vinha tão súbito conhecimento de moda feminina? Ou era um acaso e ela não acreditava neles, ou havia algo que ela não sabia...
Os meses que se seguiram acabaram por esclarecê-la. João tornara-se subitamente num expert de roupas para senhora. Interiores e exteriores. Em particular daquela marca.
Um dia veio a verdade. O marido delicado transformou-se num homem carrancudo a quem nada satisfazia.
Elisa indagou. Como só as mulheres sabem fazer, quando sentem o seu lugar em risco. E João não era muito cuidadoso. Daí que não tivesse sido difícil descobrir ... a amante francesa que é hoje sua mulher. E que deve acautelar-se porque, ao que ultimamente ouvira dizer, já andava uma espanhola na calha!

Helena

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A força de vontade!

Era um miudo franzino. Vivia lá para as bandas do Portugal profundo onde, para ir à escola, tinha de palmilhar descalço uns bons quilómetros. Filho de gente muito humilde mas que, para sorte sua, sempre entenderam os estudos como o melhor que a vida lhe podia dar.
Estavamos nos anos da guerra e com senhas de racionamento para tudo o que barriga pede para se alimentar. Mas, mesmo que elas não existissem, na casa dos seus Pais a pobreza foi sempre o prato principal.
José tinha oito anos e levantava-se pelas cinco da manhã. Um bocado de pão seco e uma caneca de leite eram o sustento para a caminhada. Fizesse sol ou chuva, lá ia o garoto por montes e vales aprender o que a D. Odete tinha para lhes ensinar.
Os anos foram correndo e a primária acabou mesmo a tempo da madrinha, bem velha, lhe dar a mão, permitindo-lhe assim fazer-se ao liceu. Foi quando calçou o primeiro par de sapatos.
O adolescente sentia que os estudos lhe acalmavam a ansia de saber e faziam dele uma pessoa feliz, apesar das dificuldades.
Acabado o liceu, José já sonhava com a Universidade. Mas quem lhe dera guarida e apoio para o secundário, não lhe podia valer para o ensino superior. Ele sabia disso.
A mãe tomou uma decisão dura. Abalariam para a cidade e ela iria trabalhar já que acreditava que o marido algo havia de arranjar. Assim foi.
E o Zé, acanhado mas com os olhos a brilhar, ganhou a bolsa que lhe havia de aliviar a compra dos livros. Foi um bom aluno. Seria economista.
Tropecei nele no meu primeiro ano de trabalho. E, um dia, soube esta história a seu respeito. Haveria mais tarde de o reencontrar na chefia de um posto. Foi uma figura importante na vida deste país.
A idade afinou-lhe, se possível, ainda mais, a capacidade de entender. Não prega sermões nem tem medo das palavras e ouvi-lo é ter a certeza de que se fica sempre a saber mais sobre alguma coisa.

Helena

As cores

No princípio era tudo branco. Tudo limpo. Mas o homem nunca está satisfeito. E experimentou com o seu sangue manchar o branco. Foi surpreendente. De repente o vermelho começou a alastrar. Devagar, sentindo que se estava a transformar. E o rosa foi surgindo, esplendoroso.
Mas a imaginação não tem limites. Uns pingos de preto prepararam o carmim e fizeram-no crescer. Este, intenso, sensual decidiu escolher com quem se misturar. E descobriu o amarelo de quem se aproximou. Todavia a fusão não foi fácil, porque o amarelo é dificilmente seduzível e fez-se rogado.
Aí o carmim, astuto, disfarçou-se de verde e rondou, de novo, o seu amor. Este, tolo, entregou-se nos seus braços. E de repente, sem que se esperasse, o verde surgiu cheio de força.
O amarelo percebeu que fora enganado. Mas dos enganos, por vezes, surgem ideias novas. Foi o que aconteceu. O amarelo descobriu que por seu intermédio, a panóplia das cores era incomensurável.E dele nasceram não só outros coloridos, como uma imensa profusão de nuances.
Como num caleidoscópio, as cores começaram a sentir o prazer da liberdade. E da mistura. De um arco-iris inicial de sete cores, fez-se a multiplicação cromática. Até o branco, alvar e virgem, se deu ao luxo de não querer continuar a sê-lo. E como o amarelo, também ele se sentiu rei e senhor.
Foi assim que o mundo deixou de ser neutro. Prazenteiramente. O modelo pegou e chegou às pessoas. Que, igualmente, ganharam cor e se misturaram...

Helena

Os números...

No princípio quando Deus criou o mundo, as pessoas que o habitavam sentiam que lhes faltava qualquer coisa. Metade dessa gente pensava que lhes fazia falta terem letras para se poderem exprimir. A outra metade entendia que antes das letras, havia que criar os números, porque eles seriam os instrumentos mais necessários à rude tarefa da sobrevivência. Por isso, foram os algarismos que primeiro haviam de surgir.
O zero, essa bola redonda, nasceu do vazio das mentes de então. É que, face à tarefa, se sentiram impotentes. Mas, um dia, um dos nossos antepassados levantou-se e clamou que era preciso trabalhar. Assim, com ele na vertical, o homem que era criativo, fez nascer o um, à sua imagem e semelhança. E foi um alívio.
Mas o outro grupo, invejoso, considerou que era preciso continuar a a inventar. E, quando ia sentar-se, lembrou-se que entre a posição de deitado e a de pé, havia outra em que apenas as costas se vergavam. Foi assim que nasceu o dois, um número de dorso arqueado.
Mas tudo isto era pouco para aqueles que criticavam tudo. E o três vai nascer, afinal, do grupo dos redondos, mais não sendo que dois vazios abertos e colocados em cima um do outro.
Logo o primeiro grupo começou a brincar com o pauzinho do um e foram-no cortando aos bocadinhos. Arrumaram os bocadinhos com imaginação e deram vida ao robusto quatro.
Os outros começaram a arredondar o três e a usar também o pauzinho do um, acabando por inventar o cinco.
A partir dessa altura, a luta tornou-se renhida entre os partidários das bolas e os partidários dos paus. Ficara incontroláveis e a multiplicar-se numa mistura das duas formas. E veio o seis e o sete. De um lado e do outro. Seguiu-se-lhes o oito que mais não é que o três fechado, sem qualquer porta para a liberdade. E logo alguém se lembrou de o deitar e inventar um novo conceito. Surge, assim, o infinito.
Sem descanso os redondos insistiam em abrir-se e surgiu o nove que no fundo é um seis que se pôs a descansar de pernas para o ar. Aí Deus interveio e disse basta, deixando-os entregues a si próprios.
Ninguem mais os parou numa miscenização numérica total. Vieram os dois digitos, os três digitos, enfim, a multiplicidade deles nunca mais deixou de se expandir...
Até que um dia alguém, sabendo que o espaço dos números era escasso, se lembrou de criar um harem numérico e, para o não ser invejado, criou as potências matemáticas. Assim já lhe era possível ter um património numérico enorme, sem que a maioria se apercebesse. A partir de então, os números ficaram à solta. Para todas as utilizações.
O Senhor que não gostou desta evolução, separou-os. E foi-os distribuindo pelo Universo. Hoje, não há sítio onde não estejam. Infelizmente, ainda nem todos os conhecem.

Helena

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Saudades...

O táxi chegou ao aeroporto da Portela mesmo em cima da hora. Detesto que isto me aconteça, pensou Sofia, enquanto corria para a fila, já reduzida, do check in. Quando se aproximou do balcão ouviu, nos altifalantes, a última chamada para o seu vôo.
Nova corrida para a sala de embarque e para o último bus que a levaria ao avião. Finalmente podia descansar. Já sentada, recordava a azáfama dos últimos dias e o risco, sempre iminente, de ter de cancelar a viagem, tantos os problemas que haviam surgido...
Mas agora preparava-se para uma semana na cidade luz. Talvez, quem sabe, até sejam dez dias, admitia. Voltar a Paris era retornar a casa. Aquela que, afinal, ia sentindo cada vez mais como sua.
Eram duas as suas vidas. A de cá, de Lisboa e a de lá. Aqui tinha a família e uma vida profissional ainda intensa. Mas em França tinha o seu coração, bons amigos e, sobretudo, liberdade para viver como queria e gostava. Sem espartilhos.
Há já bastante tempo que transportava em si duas mulheres, sem que isso lhe causasse qualquer incómodo. Em Portugal vivia de acordo com determinadas regras. Mais circunstanciais, até, do que próprias. Em Paris, ao contrário, normas era o que menos tinha. Vivia sem pré definições, era estrangeira, não tinha submissões.
O avião aterrou. Como sempre acontecia tinha um prazer especial em chegar sem avisar. Levava uma mala pequena, porque também aqui tinha tudo o que precisava.
O ritual era sempre o mesmo. Chegava a casa, deixava a maleta, dava um arranjo à cara e saía. Passeva junto ao Sena, tomava um café e ia sem destino aos sítios que guardava na memória . Aquilo que importava, na ocasião, era matar as saudades. Inspirava fundo como se aquele ar lhe limpasse os pulmões. E só voltava a casa quando a luz rosa do céu, lhe dizia que eram horas. Quase sempre por volta das oito.
Enquanto metia a chave à porta, a música de jazz vinda do interior anunciava que alguém estava à sua espera...

Helena

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Não deixes para amanhã...

Marcela sempre fora assim. Poupada nos gestos e nas palavras. Não decidindo nada de imediato, na presunção de que daí a dias seria melhor. Na família chamavam-lhe "a adiada"!
Não era fácil ser sua amiga nem vencer a barreira das suas indecisões. Claro que ela sofria menos do que os outros, porque na esperança de que o dia seguinte, a semana seguinte, enfim, o mês seguinte oferecessem condições mais benéficas, também adiava dores e desilusões. Os que com ela conviviam diziam-lhe que, sendo assim, daquele geito, ela acabava igualmente por postergar as alegrias. Mas Marcela prosseguia o seu caminho satisfeita por poder dilatar todos os seus prazos.
Por várias vezes teve problemas na escola, depois no liceu e finalmente no trabalho. Todos lhe diziam que um dia ela ainda se iria arrepender do seu feitio, mas a nossa heroína pouco mudava no seu comportamento. "Só um susto grande vai fazer com que mude" diziam os amigos...
Estivemos muito tempo sem a ver. Sem sabermos nada dela. Havia quem dissesse que tinha um noivo, mas ninguém tinha a certeza.
Um dia numa daquelas reuniões de colegas de liceu, a Marcela apareceu. A horas. Foi uma festa à sua volta. Todas queríamos saber o que lhe tinha acontecido. Embora discreta lá contou, um pouco, a sua vida.
Começara a trabalhar cedo, logo que acabara o secundário. Decidira continuar a estudar em horário pós laboral. Tinha terminado o curso havia poucos meses.
Como seria de esperar, havia de apaixonar-se. E namorou o prazo tido por regulamentar. Até que, numa tarde foi pedida em casamento. E aí voltou-lhe a indecisão. Não estava segura acerca da vontade de se casar. Mas não queria perder o Pedro. Adiou, quanto poude, a decisão. Sem se aperceber, como sempre, das consequências dessa espera. Apesar de saber que estava a correr riscos, não conseguia decidir-se.
A certa altura o sexto sentido feminino deu-lhe aviso. E ela, intuindo que o tempo escasseava, e que o perigo já podia ser demasiado demasiado, resolveu aceitar a proposta feita.
Porém a reacção de Pedro, ao dizer-lhe que "agora já não havia pressa", não foi a esperada. Perturbada, perguntou-lhe o que é que ele queria dizer com aquela resposta.
Foi aí que percebeu que fora longe demais e que o seu tempo havia passado. É que não se deve deixar para amanhã o que pode ser feito hoje. Com efeito o noivo, entretanto, encontrara quem lhe deu a resposta no mesmo dia do pedido...

Helena

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Guardado está o bocado...

Éramos muito Maria rapazes. Mas vinhamos todas da mesma escola primária, a da senhora D. Branquinha, a qual, por todos os meios à sua disposição, tentava fazer de nós umas meninas bem comportadas. Não o terá conseguido completamente, mas melhorou-nos muito.
Entrámos todas para o Liceu D. Felipa de Lencastre. Da dezena que constituía o nosso grupo, apenas a Manuela destoava. De facto, a beleza não a fadara. Em compensação era, de longe, a mais dotada. Tirava apontamentos das aulas, esclarecia as nossas dúvidas e alinhava sempre nas nossas pequenas loucuras. Era o que se podia dizer "um amor de pessoa"!
Fomos crescendo sempre juntas e juntas apanhámos o primeiro embate: a tuberculose da Judite. A lembrança que tenho desse tempo é terrível, porque a nossa amiga foi para um sanatório e as nossas famílias, com receio de contágios, evitavam que tivessemos qualquer contacto. Nem as cartas nos eram permitidas...
Um dia veio a notícia. A nossa amiga morrera. O facto marcou-nos a todas. Mas a Manuela, sempre ela, tomou a iniciativa de que junto ao corpo fosse uma carta escrita por todas nós. Ainda hoje lembro esse meu primeiro contacto com a morte, com tristeza e galhardia, por termos conseguido que a Judite levasse com ela um bocadinho de todas nós.
Crescemos. Ficámos janotas. Tivemos namoros. A Manuela melhorou, mas continuava pouco apreciada pela beleza. O que nela encantava era algo bem diferente, qualquer coisa que vinha de dentro, uma luz que nós não tinhamos.
Entradas na Faculdade, deparámos com um professor que "embeiçava"o pessoal feminino. Cada uma de nós estudava para ser a melhor e se poder tornar o centro das atenções do nosso guru. A Manuela não fazia qualquer esforço. Era naturalmente a melhor. E foi nela que o professor reparou. E a ele que ela, simplesmente, correspondeu. Sem dúvidas ou complexos.
Fomos, há dias, aos seus cinquenta anos de casada. Foi um gosto imenso revê-los. Manuela está hoje uma mulher interessante. À despedida disse-nos, a sorrir, que sempre acreditara que "guardado está o bocado para quem o há-de comer...". Gargalhámos com satisfação e concordámos com ela!

Helena

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A mentira

Um dos grandes inconvenientes de Adolfo era mentir muito. As mentiras eram sempre diáfanas e até lhe davam uma auréola especial. Mas para se ser um bom mentiroso tem que se nascer já com essa vocação. É que não é mentiroso quem quer!
Adolfo tinha uma mentira fácil. Mas também se esquecia, com facilidade, das que dizia. Daí ter já sido apanhado várias vezes. Não era um mitómano. Apenas alguém que se servia dessa faceta para se livrar de um problema de ocasião.
Era assim que andava na Universidade há quatro anos e ainda não terminara o primeiro. Em casa todos estavam convencidos que ele era quase advogado. E, quando o Pai, esse sim do ofício, lhe disse que nessas férias conviria assegurar a ausência de um dos estagiários, ele sentiu um calafrio.
De imediato, acossado, respondeu que tal não seria possível, porque havia sido selecionado para frequentar um workshop de direito comunitário. Estranhando tanto empenhamento nos estudos em época estival, começou a fazer-lhe perguntas e não ficou convencido com as respostas...
Pressentindo que o seu golpe podia ser descoberto, disse que até havia uma carta da Faculdade a formalizar o dito convite e que ele a trouxera em mãos. A falsidade estava lançada. Agora havia que lhe dar forma. Para tal era necessário papel timbrado e forjar o texto adequado. Adolfo que era um sedutor lá conseguiu que uma das meninas da secretaria, à sucapa, lhe arranjasse, o material necessário.
Faltava arranjar o pior: um título e um conteúdo para o grupo de trabalho. Também isso ele empenhadamente fez, juntando vários temas que enconrou na net sobre o assunto.
E fê-lo bem, pensou. Só que quando o Pai viu a carta, disse-lhe que iria falar com o orientador do seminário para assistir a um dos temas... Adolfo nem pestanejou. Mas não percebeu se havia cometido alguma falha. O que sabia é que era necessário emendar a mão.
Deste modo, quando a data estava a aproximar-se, disse ao progenitor que, afinal, decidira optar pelo escritório.
"Calculo que sim. Mas não será para mais do que paquete, pois é para isso que dá o primeiro ano da Universidade e os teus diminutos conhecimentos.
A mentira, por norma, tem perna curta. A tua, essa, nem perna tem. Vais ficar no escritório, sim, nessa função. E estudar em horário laboral. À tua custa, claro. Porque o curso que devias ter feito, eu já to paguei. Agora é a tua vez. Da próxima, arranja alguém que saiba fazer um sumário sobre direito comunitário... ou, então, não te aventures naquilo que não dominas".
Consta que, desta vez, a lição lhe serviu. Pelo menos advoga em Lisboa!

Helena

domingo, 29 de agosto de 2010

No calor do teu corpo


Era quase manhã quando Natália voltou a casa. Estava felizmente cansada. Mal abriu a porta da entrada, começou a despir-se, deixando pelo caminho para o quarto as várias peças de roupa de que se ia desfazendo.
Hesitou entre o banho de imersão ou o duche. Optou pelo último. Meteu-se na banheira e deixou a água escorrer pelo corpo. O cheiro da lavanda de Rodrigo tornou-se percetível. Ficou assim, uns instantes parada.A água continuava a correr pelo corpo dela reavivando-lhe a sensação difusa de que ele ainda estivesse dentro dela. Não presente, mas numa fusão estranha de odores e de pulsões. Uma espécie de ter e de não ter.
Era uma sensação algo divina, tal o enorme bem estar. Nem sabia o que era melhor. Se o duche que tomava quando se preparava para o ter, se aquele que tomava depois de o ter tido. Sempre se apossara dela esta dúvida.
Amanhã cada um seguiria a sua vida. Mas durante aquele mês de ausências familiares intermitentes, eles não se cansavam um do outro. Todos os anos era assim. E já lá iam cinco.
É imoral o que faço, pensava, enquanto a água lhe escorria pelo corpo. Mas imoral para quem? Não estou a roubar nada a ninguém, nem pretendo fazê-lo. Então, onde está a imoralidade de nos concedermos, sempre, estes noites de folga das respectivas famílias, se estamos com elas, felizes, ao fim de semana?
Eram oito da manhã quando Rodrigo ligou a Márcia. Ninguém atendeu o telemóvel. Pensou que ainda estavam todos a dormir. Deixou mensagem "Querida vou agora sair para uma reunião chata. Só queria saber como estão todos. E dizer-te que te amo".
Fechou o aparelho, desligou o candeeiro e meteu-se entre os lençois para dormir!

Helena

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Um grupo coeso

Pedro ia de combóio para o Porto. Podia ter levado o carro, mas andava tão cansado que tinha tido medo de adormecer ao volante. Preferiu, por isso, entregar-se nas mãos do maquinista e ir vendo essa réstea de Portugal que se desenrolava, como um filme, através da sua janela.
Escolhera um lugar com mesa na presunção de que talvez lhe apetecesse abrir o portátil e escrever. Que nada! O que lhe apetecia era mesmo "desaproveitar" o tempo.
Dirigia-se ao encontro semestral dos "Borralhos", aquela mão cheia de amigos que vinha dos bancos do liceu. Já haviam desaparecido quatro. Dois na guerra do Ultramar e dois que tendo sido presos pela polícia política, haviam desaparecido sem se saber exactamente como. Por doença, diziam uns. Por maus tratos, diziam outros. Nunca soube a verdade. Nem a causa lhe intreressou muito, face à dor da perda de dois seres que muito estimava.
Um deles era fracote de saúde. Mas o outro não. Enfim, pensou, já cá não estão...
Ninguém percebia o que que ligava aquelas almas. Com efeito, um era um conhecido médico, outro canalizador estabelecido, outro engenheiro, outro alfaiate, outro professor e, finalmente, o último, escritor. De comum, tinham o terem nascido na Beira interior e lá feito primária e liceu. Uns, entraram logo na Universidade. Outros, começaram cedo a trabalhar.
A revolução de Abril quase conseguia separá-los. Mas, afinal, sobreviveram. Com efeito, quando foi da prisão dos Francisco e do Marco, a relação de amizade toldou-se, porque as ideologias que nunca os haviam incomodado, naquela altura, sobresaíram. Mas foi sol de pouca dura. Quando o primeiro morreu, as diferenças esfumaram-se. Só o desgosto contava.
Por isso, acabaram a prometer-se que daí em diante nada os afastaria e que, fosse qual fosse a prática política de cada um, tudo fariam para salvar o que havia sobrevido. Não foi fácil. A amizade sofreu rombos. Mas perdurou e nunca faltaram ao jantar semestral.
Era nisto que Pedro pensava, satisfeito, recordando as diferenças da forma de viver de cada um dos seus amigos. Desta volta o jantar era em casa do Francisco, o canalizador. Pedro já sentia as papilas gustativas a salivarem, só de pensar no que ele teria preparado. Sim, porque nestes jantares, a Maria não metia o bedelho. Ele é que preparava tudo.
O combóio chegou. Pedro tomou um táxi directo para casa do amigo. Já lá estava o Manuel agarrado ao copo de tinto. Aos poucos os outros foram chegando. Todos falavam ao mesmo tempo de tudo e de todos. Uma algazarra total!
"Passa o binho Xico, que a pinga está boa" era frase de mote. A galhofa durou a noite inteira. Quando Pedro chegou ao hotel ia alegre. Decerto que sim. Mas ia, sobretudo, feliz com o convívio, sempre igual, daquele grupo tão coeso...

Helena

O divórcio

A festa decorria numa quinta da família. Dificilmente se conceberia melhor aproveitamento de um espaço, já de si naturalmente muito bonito. Apesar do calor de Agosto, a frondosidade das árvores era tal que a aragem trazia alguma frescura.
Matilde e Raul tentavam apenas, no fundo, encobrir a sua enorme tristeza e compensar a filha pela guerra que sempre haviam movido contra aquele casamento. Mas tudo havia sido inútil e por mais que lhe mostrassem, preto no branco, os riscos que Carolina ia correr com o que sabiam acerca de Alexandre, nada a demoveu. A todos, afinal, acabou por impor a sua vontade, considerando de péssimo gosto as críticas e observções que os pais haviam tecido sobre o seu futuro marido. Ela tinha certezas e era isso que realmente contava.
Ali estavam os dois, já casados, a percorrer as mesas e a mostrar a sua felicidade. Os pais do noivo estavam manifestamente pouco à vontade, mas tentavam disfarçar. Apenas Matilde notava esta incomodidade e lhe dava uma muito pessoal interpretação.
"Eles sabem", pensava. Mas não têm coragem de fazer nada. Aliás, fazer o quê, nesta altura do campeonato, divagava a mãe da nubente.
Eram perto das quatro da madrugada quando os últimos convidados saíram. Matilde e Raul estavam desfeitos de cansaço e de preocupação. "Esperemos pelo fim da lua-de-mel, minha querida", disse Raul antes de pegar num sono profundo.
Nem uma notícia, nem um telefonema, nem uma mensagem. Nada. Os noivos estavam mudos e quedos. O fim da lua-de-mel aproximava-se quando, inesperadamente, a filha lhes apareceu em casa.
"Então não era só daqui a três dias que vocês voltavam? E o teu marido? Quando chegaram?".
Antes que as perguntas surgissem em catadupa, Carolina agarrou-se aos pais, e com bastante calma, disse-lhes: "Vocês tinham toda a razão. Ele prefere os homens. Vamo-nos divorciar!".

Helena

Uma certa forma de amor

“A liberdade de começar de novo é a maior de todas as liberdades. Se uma vida são muitas vidas, a da nossa Mãe começou de novo.
Ela é a mesma, só agarrou com as duas mãos a coragem que nunca lhe faltou. E meteu-se em brios e passou a prova do público. Descobriu que a vida também se escreve. Não tem ciência exacta sobre os sentimentos nem doutrina em forma sobre as emoções. Tem olhos para entender e ideias para explicar. Para nós não é novidade. A nossa Mãe escreve como sempre nos falou. São sermões laicos e dúvidas liberais. São interpretações de fé e códigos de carácter. São memórias ternas e contos de tristeza.
Ganhou-se a distância do que é pouco importante, escrevendo sobre o que está mais perto das pessoas. Nós só podemos recomendar a nossa Mãe com a autoridade dos conhecedores. E estar do lado da sua liberdade com a sinceridade dos admiradores” .
Este texto é, também, uma história de amor de dois filhos pela sua Mãe. Foi escrito por Miguel e Paulo Portas, faz hoje vinte anos, como prefácio ao primeiro dos doze livros que já tenho publicados.
Só espero que os meus netos, mais tarde, quando eu já aqui não estiver, saibam relembrar o que de mais perene eu, como exemplo, creio ter-lhes deixado. E que, relativamente aos seus Pais, possam manifestar tanto amor, como o que este texto revela!
Helena

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Os gémeos

Eram gémeos sim. Mas ninguém diria. Um era branco e o outro chocolate. Os pais, esses, eram brancos ambos.
Quando nasceram a família não queria acreditar e por mais que o médico explicasse que tal podia acontecer se, lá para trás, houvesse um parente de côr, o certo é que a dúvida se intalou entre Margarida e Duarte. Dúvida de que não falavam, pensando qualquer deles que se abordassem o assunto, isso iria pôr a nú uma desconfiança que só podia ser insana. Cada um pensava consigo próprio como iriam lidar com o assunto.
Margarida gostava de mandar fazer um exame de DNA mas não tinha coragem de o propôr. Duarte pensava o mesmo mas receava a reacção da mulher. Ambos serenaram um pouco quando a avó paterna disse ter descoberto que um trisavô, que nascera em África, era mulato e a mãe dele, ao que constava, seria negra.
Com o rolar do tempo foram esquecendo esta história. Até chegar o momento de ser necessário fazer um exame para saber qual deles poderia doar um rim ao pai, no caso de ser preciso fazer um transplante.
Colhidos os resultados, a surpresa foi total. Um deles era compatível e eram realmente gémeos. Mas o pai não era o paciente. Tragédia familiar a juntar à preocupação com a doença paterna.
Toda a anterior angústia e desconfiança veio, de súbito, ao de cima. Então se era assim, quem era o pai deles e que comportamento tinha tido Margarida? Ninguém queria, de facto, saber a verdade. Apenas queriam acusar a mãe de mau comportamento e bani-la da família. Ao contrário, os gémeos e, de certo modo, também Duarte, acreditavam na seriedade da mãe.
O transplante foi necessário e realizou-se. Mas Jaime, o dador côr de chocolate exigiu que fossem feitas provas à mãe. Surpresa maior: Margarida não era a mãe biológica dos dois rapazes. A família ia-se desfazendo. Aguentou-os o amor que tinham pelos que consideravam filhos e também a força que unia aquele quarteto.
Quando se encontrou bom, Duarte pôs o caso nas mãos de um avogado que, depois de um ano de investigações, chegou à conclusão de que houvera uma troca. Pôs-se, então, o problema de saber se valia apena tentar encontrar os pais biológicos. E os filhos biológicos.
Perante a questão, foram os gémeos a decidir: "Os nossos Pais são vocês, que nos criaram e deram amor. Para nós isso é suficiente. Quanto ao resto, só vocês podem decidir se querem ou não continuar a investigação"!

Helena

Uma questão de fé

Roberto crescera numa família dita católica, pese embora não ser grande a sua militância. Apesar disso, ou talvez por causa disso, foi educado num colégio religioso, tendo a qualidade do ensino sido a determinante da opção paterna.
Porém, seria aí que ele se iria descobrir. Um professor viria a ser determinante na vida do adolescente, ao ensinar-lhe filosofia, uma disciplina que, por norma, não exerce grande atracção sobre a maioria dos alunos. Contudo fopi através dela que o garoto descobriu o que entendeu ser a sua vocação: dedicar-se aos outros.
Quando em casa deu conhecimento de que queria cursar Teologia, a família reagiu mal, perguntado-lhe como é que ele iria ganhar a vida com tal formação. O jovem respondeu que não era um problema de carreira profissional, mas sim uma questão de vocação.
E, mau grado a reacção familiar, quando chegou a altura foi para o seminário. Foram anos muito duros porque apesar de Roberto saber que aquele era o caminho que queria seguir, não tinha o apoio daquilo o que se chama de fé.
Era uma luta quotidiana entre ele e Deus. O primeiro pedia insistentemente ao segundo que lhe concedesse essa graça. Mas o segundo parecia não ouvir as suas súplicas. E, por mais que o seu confessor e orientador espiritual lhe dissesse que nem todos possuíam essa capacidade de acreditar, e que a verdadeira determinante da vocação era a vontade, o certo é que Roberto sofria e teve mesmo momentos em que pensou desistir. Para ele era difícil de aceitar um padre com problemas de fé. Mas, por outro lado ele sabia, sentia que aquele era o destino que queria para si.
"Se amar não é um caminho de rosas, amar a Deus ainda é-o ainda menos, porque é mais difícil, mais avassalador. Um dia você vai perceber que a fé também pode ser feita de muitas dúvidas. Os desígnios divinos nem sempre são fáceis ou perceptíveis. Ama o próximo e talvez venhas a descobrir que, afinal, a fé está contigo sem tu o saberes".
Roberto segiu o seu caminho e em certa altura foi colocado numa paróquia. Aos poucos foi conhecendo o seu rebanho e acompanhando os seus problemas. Tentou sempre a persuasão e fez da tolerância a sua grande virtude. Muitos dos jovens que hoje frequentavam a sua Igreja tinham-se aproximado dela por essa via.
Uma tarde, a madre superiora de um convento onde prestava assistência religiosa, pediu-lhe que conversasse com uma das suas irmãs de comunidade. O padre Rogério foi. A madre recebeu-o e disse-lhe que a irmã Teresa estava com problemas de fé e precisava dos seus conselhos.
O padre ouviu-a e teve a impressão de se estar a ouvir a si próprio, há muito tempo atrás. Por isso resolveu contar-lhe a sua estória, a sua luta e quanto tudo o que passara lhe doera.
Terminou dizendo:" possivelmente, irmã Teresa, eu não terei desistido porque o Senhor sabia que, alguma vez, eu seria chamado e posto à prova. Essa ocasião acaba de chegar. Não desista. Um dia vai chegar a sua vez. É isso a vocação: ter dúvidas, mas continuar. Obrigada irmã. Acabou de me dar uma preciosa ajuda. A fé é, sobtretudo, ser fiel ao que queremos que seja o nosso destino. No meu caso, como possivelmente no seu, é e será, amar os outros e neles amar a Deus!"
Helena

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Uma quarto de motel...

João estava agitado. Por várias vezes se aproximou do telefone. Por várias vezes olhou o telemóvel. Ele sabia a causa da inquietação. Por estranho que pareça num homem de 35 anos, era a primeira vez que enganava a mulher e entrava num motel. Já na recepção se atrapalhara. Depois, a Lúcia não aparecia e ele começava a duvidar que ela tivesse recebido a mensagem ou que a tivesse compreendido, uma vez que apenas escrevera 205. Claro que só podia ser o número do quarto. Que mais poderia ser?
E se ele telefonasse e lhe perguntasse? Mas se usasse a linha do motel ela não atenderia porque não reconhecia o número. E se ligasse do telemóvel? Não. Eles tinham combindo que nunca o fariam, por que os seus telefones eram conhecidos dos respectivos consortes, a Mariana e o Luís. Mas, de facto, para quem tem apenas duas horas, perder quase meia é frustante.
É castigo divino por nenhum deles merecer isto, pensou. Mas foi ela que sugeriu o encontro. Logo ela, que era a melhor amiga da Mariana. Claro que ele também gostava do Luís. Que fazer? Ele tinha-se apaixonado por Lúcia e era correspondido.
Mas era importante conhecerem-se fisicamente, porque uns beijos roubados em escadas ou corredores não são garantias de coisa alguma.
Já passavam três quartos de hora quando João resolveu arriscar e ligou para a recepção a saber se havia alguma mensagem para o seu quarto. Que não, que não havia, respondera o recepcionista. Tentou o telemóvel. Estava desligado.
Ao fim de uma hora resolveu voltar a vestir-se. Saíu e dirigiu-se ao local onde deveria pagar a conta. Mas de repente, ao fechar a porta do quarto, escassos passos andados, reconheceu a voz de Mariana e, segundos depois, a de Luís. Foi um impasse. Um silêncio mortal. O elevador chegou e eles tomaram-no. Mas nunca chegaram a falar sobre o assunto. Mesmo quando já estavam divorciados!
Helena

O galã

O rapaz era galã e bem falante. Tinha boa figura e conteúdo que dava para dois dias de conversa mais apurada. Sonhava fazer cinema. Mas também queria ser manequim.
Vivia em Campo de Ourique onde todos o conheciam. De vez em quando conseguia uns biscates fotográficos que iam dando para os anéis e as pulseiras de cabedal. Dizia-se comendador, desde que tinha namorado a filha de um, a Alzira. Mas o futuro sogro achou que o Rui - era assim que ele se chamava - não tinha cabedal suficiente para casr com a sua menina. Por isso, enxotou o jovem, conseguindo atraí-lo para as expressivas belezas naturais de uma das suas empregadas, a Manuela. A qual, cheia de visão, achou que bem vestido e com as arestas limadas, o rapaz até podia ter futuro.
Deste modo a Alzira ficou de mãos a abanar e a Manuela resolveu investir no potencial do jovem. Investimento caro, diga-se de passagem. Teve, mesmo, que contrair um empréstimo bancário e ainda hoje ninguém sabe que garantias a pequena terá oferecido.
O que é certo é que o Rui depois do personal adviser que a Manuela lhe arranjou, não parecia o mesmo. No bairro todos estavam siderados com a transformação.
"Parece um verdadeiro manequim", diziam. A voz estava aveludada, o timbre era correcto e bem posicionado, a fatiota apropriada à diversidade de situações. Enfim, o galã criara estilo.
E depois de a televisão o ter apanhado numa reportagem feita sobre o bairro, Rui Silveira passou a Rui d'Albuquerque Silveira.
O trabalho começou a surgir e, a certa altura, o nosso homem de Campo de Ourique passou à Estrela. Desta, ao bairro da Lapa, foi um pulo. Dado com muita inteligência...
Na Lapa, como convinha, até ganhou família. Pelo menos, um bom número de tias. Tias estas, que, como ele dizia, até tinham sobrinhas.
Quem já não conseguia acompanhar-lhe a pedalada foi a Manuela, que para além de pagar a pesada prestação do empréstimo bancário que havia contraído, deixara de merecer os favores do seu pupilo. O qual, agora, até parecia envergonhado quando a via.
Foi assim que a sua vida mudou. Uma das tias, solteira, a quem o Rui, de modo desinteressado, fazia muita companhia, resolveu levá-lo para o seu apartamento, de sete divisões, ali para os lados da Borges Carneiro. Agora sim, era o sobrinho que, ao dinheiro que ela tinha, dava estatuto mediático, tal o sucesso que soubera grangear.
E, quando a senhora morreu, foi ele o contemplado com a casa e os depósitos, que não eram poucos. Finalmente o galã merecera as dádivas da vida. Mandava dizer missas por alma da falecida e mantinha o jazigo impecável.
Manuela, claro, desaparecera. Curiosamente, o comendador, o seu ex futuro sogro, estava atento. Um dia, resolveu convidá-lo para jantar na sua casa. Alzira ficou logo alvoroçada com a perspectiva.
E quando veio o café e a moçoila estava ausente, o pai dela perguntou-lhe, de chofre, se continuava a gostar da filha. Ao que Rui respondeu, cheio de impância e também de alguma sabedoria: "Gostar, gosto. Mas sabe, caro Comendador, agora a vida é outra e eu sou um galã. Que é rico. Não leve a mal, mas a Alzira já não me serve... De momento, o que preciso é dum título, ou de um nome da nobreza, que é o que ainda me falta. Mas tenho tudo para o conseguir!"

Helena

Lágrima redentora


A fotografia, a sépia, já não estava em bom estado. Eram anos e anos junto do coração de Eduardo, passando de carteira para carteira, jamais esquecida ou, até, trocada. Nela se viam, perto da escola primária na planície alentejana, duas crianças de bibe e de mão dada. Estavam ligeiramente afastadas do restante grupo escolar que tinha no centro a professora.
Como tantas vezes acontecia quando lhe pegava, perguntava-se onde andaria Catarina, a quem então considerava de namorada e que como tal continuou até à sua vinda para Lisboa cursar Medicina.
Lembrava-se bem de como ambos, já adolescentes, haviam picado o dedo anelar e misturado os seus sangues, prometendo-se um ao outro. Compromisso mantido depois da primária e durante o liceu, nesses anos em que nunca se deixaram.
Mas, como nas telenovelas de hoje, a diferença entre os dois era grande. Ele filho do ferreiro da aldeia. Ela filha do advogado da terra. Ele partira para Lisboa a cumprir a ascensão social que os pais lhe haviam destinado. Catarina, por seu lado haveria de juntar à ambição paterna, as terras de um grande latifundiário da região. Tudo acontecera nos cinco anos em que terminara o curso.
Os pais, que esperavam o seu regresso à terra que o vira nascer, ficaram tristes quando souberam do convite que lhe havia sido dirigido para, nos Estados Unidos, fazer investigação. Mas aceitaram porque era acarreira do filho que estava em causa. Não os seus gostos pessoais.
Ela só mais tarde tivera conhecimento da decisão, já estava casada. Muitas vezes pensava que o destino não se escreve. Já está escrito. E que Eduardo não teria que ser seu, apesar da selada promessa que haviam feito.
Eduardo, embrenhado na vida profissional, não casara nem tivera filhos. Apenas ligações de ocasião sem qualquer importância que não fosse a conveniência da altura. Hoje tinha pena. Voltara por fim a Portugal onde fundara num hospital, um modelar centro de investigação.
Desde que a mãe morrera trouxera o pai para junto de si e rodeara-o de todo o conforto, como já, aliás, antes fizera aos dois quando vivera na América. Comprara-lhes uma das boas casa da região e de ferreiro o senhor Andrá passara a dono de uma loja de ferragens onde tinha quem trabalhasse para ele.
Catarina tivera dois rapazes. Um seguira as pegadas do pai. O outro tornara-se médico na capital, onde era respeitado e admirado. Também ele ia de quando em vez visitar a família. Gostava de lá estar. O Alentejo temperava a sua vida urbana e o stresse do bloco operatório.
Os anos foram passando. Eduardo nunca mais viu a antiga paixão. Diziam-lhe que não parecia a mesma e que a casa apalaçada onde vivia se tornara no centro cultural da região.
Uma tarde quando se preparava para sair, uma enfermeira chamou-o para uma urgência. Havia que tomar uma decisão e o médico cirurgião queria ouvi-lo. Voltou atrás, fardou-se e entrou na sala de operações. Na sua frente tinha uma série de chapas. Era preciso decidir se devia ou não intervir-se. Só nessa altura reparou na doente. Era Catarina.
Por uma fração de segundos sentiu o bater do seu próprio coração. Depois tomou-lhe as mãos da doente e disse"não vale a pena. A paciente acaba de falecer".
Já no seu gabinete, olhava a fotografia. O destino, com efeito, não se escreve.Uma profunda e silenciosa dor permitiu-lhe, finalmente, a lágrima redentora!

Helena

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Uma carta de amor

Minha muito querida Ana

Passaram escassos meses sobre a tua partida e eu continuo a entrar em casa convencido que te encontro à minha espera. Ao fim da manhã pego vezes sem conta no telemóvel para te telefonar, como fazia todos os dias. Ao passar na florista do Chiado o impulso é comprar-te as orquídeas de que tanto gostavas. No cinema quantas vezes me não viro para a cadeira do lado para pegar nas tuas mãos ausentes, ou para te segredar aquilo que já não podes ouvir.
A saudade de ti, a saudade de nós, a saudade do que vivemos é uma dor tão insuportável que quase me pergunto como ainda consigo existir.
As noites que antes nos pareciam tão curtas para o muito que tinhamos para nos dar, são agora de uma imensidão sem fim. Tão longas que chego a perguntar-me como eram antes de te encontrar.
O teu cheiro está impregnado em cada objecto do nosso quarto, em cada livro do nosso escritório, em cada peça que decora as nossas salas. Tanta e tão forte é a tua presença que não suporto que a empregada ouse tocar qualquer coisa que tenha passado pelas tuas mãos.
Vivo de ti sem te ter, desejo-te sem te ver, toco a tua ausência e tento fazer dela uma presença.
Sei que isto é mais do que amor. Sei que isto é obsessão. Mas se é dela que eu vivo, como posso querer curar-me, se isso representa privar-me de ti? Que me importa que digam que é doença se é da doença que depende a minha saúde?
Tento viver sem a tua imagem, mas sinto-me como um naufrago à deriva. Tento esquecer-te mas tu estás cada vez mais presente no meu dia a dia. Tu és a minha dependência, a minha sofreguidão, o meu único amor. Enfim, Ana, tu és a minha vida e sem ti eu não existo!


Do teu António

A adúltera


Esta história é verídica e passou-se no escritório de advocacia de meu pai, no início da sua carreira profissional. Só bem mais tarde, quando meu irmão mais velho se licenciou em Direito, e ele já se tinha reformado, é que dela tomámos conhecimento. O caso passa-se no tempo da vigência da Concordata em que o casamento religioso tinha efeitos civis. E os nomes, claro, são fictícios.
Uma tarde a Lourdes, a eficiente secretária de meu pai avisa-o que o Dr. Francisco Pina - que havia telefonado a pedir uma consulta - estava na sala.
Mandado entrar e depois da conversa social tradicional entre pessoas educadas, meu Pai perguntou-lhe ao que vinha. A resposta foi imediata: "pretendo mover à minha mulher Celeste Pina uma acção de adultério".
Perante esta resposta, a temperança do advogado entrou em açção, explicando que essa era a via normalmente mais complicada, visto que era difícil de provar e que o desejável era, sempre, que o divórcio, a ter de existir, fosse o mais cordato possível.
"Eu tenho provas, senhor doutor. Tenho cartas e tenho fotografias. Estão aqui. Não pretendo ser tolerante, porque isso é o que sou há cerca de três anos. Agora o que quero é um divórcio litigioso. Por isso peço ao senhor doutor que chame aqui ao seu escritório a minha mulher e lhe dê conhecimento do que pretendo fazer. Deixo, assim, o caso nas suas mãos e assino já o que fôr preciso."
Meu Pai, que era um homem ponderado, disse-lhe que antes de tudo, gostaria de falar com a senhora D. Celeste. Depois, então, se estudaria a questão. O cliente concordou.
Convocada a senhora, esta compareceu, embora um pouco surpreendida pelo chamamento. Cheio de cautelas o Dr Sacadura Cabral explicou-lhe a situação e o motivo pelo qual a chamara.
A senhora não pareceu incomodada e, a sorrir, respondeu:" Senhor doutor só há aí um pequeno erro. Se sou, de facto, adúltera, é com o meu actual marido, o Dr. Francisco Pina".
Perante o "Como?" de meu Pai, a senhora explicou-se. Esclareceu, então, que este era o seu segundo matrimónio, apenas pelo civil, uma vez que o primeiro, com o Eng. António Vaz, fôra na Igreja.
" A pessoa em causa, melhor, o meu amante, a quem o senhor doutor se refere é o meu primeiro marido, com quem, de facto, há três anos retomei relações. Sendo católica, como sou, o meu verdadeiro marido é este. Perante Deus que é quem me interessa. Logo, se sou adútera, é com o segudo, do qual, aliás, pretendo divorciar-me para retomar o meu verdadeiro e único casamento...".
Seguiu-se um curto diálogo de cortesia e a promessa de uma nova conversa com o cliente, o que foi rapidamente cumprido. Depois do esclarecimento prestado por meu Pai, o Dr Francico estava estupefacto. É que, embora sabendo da sua existência, nunca havia visto o primeiro contemplado da sua senhora.
Meu Pai voltou a aconselhar-lhe o mútuo acordo e explicou-lhe que, se porventura apanhasse um juiz católico, os argumentos da ainda mulher podiam ter algum peso...
Com efeito a união havia de desfazer-se em termos amistosos e, passados alguns meses, meu Pai recebeu um cartão de agradecimento da senhora. Que, aliás, veio a saber, viveu mais vinte anos com aquele que Deus sancionara!

Helena

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Singular e plural


Um dia Laura, que já ia no terceiro divórcio, disse-me: “fui com qualquer dos meus três maridos uma pessoa diferente. Se, por um estranho acaso, eles se reunissem para falar de mim, de certo chegariam à conclusão de que não estavam a referir-se à mesma mulher”.
Nunca mais esqueci esta conversa. Ela voltou agora à minha memória porque a minha amiga acaba de me comunicar que está a pensar voltar a casar.
O que é que, afinal, se passa, perguntei-lhe?Não te chegam três insucessos? Então ela explicou-me que no primeiro a educação estrita que tivera, não lhe tinha permitido conhecer bem o futuro marido. Fora, assim, uma noiva casta, inexperiente e temerosa. Os filhos, seguidos, também não haviam ajudado muito. Ao contrário, a atenção que neles concentrara, havia levado a que descurasse o marido. Que acabou por se ir com quem não tinha crianças para cuidar.
No segundo tivera toda a liberdade. E usara-a. Mas, uma vez mais, os filhos perturbaram a relação. Com efeito, sempre que podia, o marido trazia para casa os dois rebentos que já tinha de um anterior matrimónio. Enquanto Laura tentava conciliar tudo, pondo o marido em primeiro lugar, as suas crianças, essas doces criaturas, decidiram ir viver com o pai, argumentando que a mãe não lhes dava atenção. Para compensar os enteados resolveram seguir-lhes as pegadas. Houve assim uma troca. Sairam dois e entraram outros tantos. Resultado: novo divórcio e novas mágoas. Mas a heroína recuperou os filhos.
Ao terceiro resolveu que não abdicaria de mais nada. Nem de filhos nem dela própria. E ele aceitou. Aceitou tanto e tão bem que acabou por perder o interesse e a desmotivar. De tal forma que seria ela a pedir o divórcio.
Agora os filhos têm a sua vida e Laura está, finalmente, preparada para partilhar a sua existência sem constrangimentos e sem deixar de ser ela própria. Pelo menos é o que ela pensa.
"Acho que agora já posso ser uma mulher felizmente casada", afirma com um sorriso nos lábios!

Helena

A herança

Ele já não era novo, mas tinha um escritório de advocacia. Constava que tinha dinheiro. Elsa era jovem mas não tinha onde cair morta. Fazia a limpesa do seu gabinete. Foi assim que se encontraram.
Quando o Dr. Joaquim lhe propôs casamento, prometeu-lhe fazê-la sua herdeira. O termo, mágico para quem não tem nada de seu, chegou-lhe. Nem tratou de saber quanto valia o património, apesar das amigas insistirem para que o fizesse.
A casa, dizia-lhe o noivo, era sua propriedade. Assim como o recheio. O carro também era seu e a reforma bastante boa. Tudo, por sua morte, ficaria para ela.
Foram mesmo ao cartório para ele fazer testamento a favor dela. Tudo como manda o figurino da gente séria. As amigas, desconfiadas com a sorte, aconselhavam-na a ter cautela.
"Não cases. Vai viver com ele, porque ao fim de dois anos tens quase os mesmos direitos" diziam as amigas.
Mas Elsa queria ser mulher de um senhor doutor. Achava que era essa a sua ambição e dava-lhes conta dela.
" Tem juízo, rapariga. Vais dar-lhe carne fresca e não sabes se a mobília tem caruncho. Vai com cautela. Deixa-te de grandezas", avisavam as mais batidas pela vida. Mas nada demoveu Elsa do sonho de ser a mulher do senhor doutor.
Chegou o dia. O casamento pelo civil decorreu em casa do noivo. E foi quando ela soube que o futuro marido, afinal, era brasileiro. Mas ele acalmou-a dizendo que apenas nascera no Brasil e viera para Portugal com meses de vida.
De facto, Elsa estranhara não ver família, mas percebeu que vir a Portugal era caro. E a cerimónia fez-se.
Passaram uns anos em que a vida foi difícil. Apesar de ser a mulher do senhor doutor, continou nas limpesas. E era o dinheiro que ganhava que ia aguentando a casa.
Um dia o marido adoeceu. Durou pouco. Afinal padecia de uma doença maligna há já alguns anos. Ela é que não sabia.
Quando foi o enterro Elsa descobriu a verdade. O casamento fora uma farsa. O Dr. Joaquim tinha mulher e filho no Brasil. Que vieram a Portugal reclamar a herança. A tal que ela havia de receber. Invocou o testamento. Mas este havia sido anulado pouco depois de casarem.
Valeu-lhe a dita união de facto, que ela recusara, para manter a casa que, afinal, era alugada!

Helena

Quem com ferro mata...

Conheceram-se na Faculdade. Ela distinguia-se das colegas pela forma como se arranjava. Os últimos modelos, os cabelos e as mãos de quem frequenta regularmente o cabeleireiro. Marta parecia mais uma docente do que uma discente.
As más línguas diziam que tinha um amante, velho, que a sustentava. Verdade ou não, o certo é que ela deu o melhor aproveitamento a esse apoio, ao decidir fazer estudos superiores. Muitas teriam ficado pelo lado fácil de tal tipo de relações.
Quando encontrou Artur, o caso complicou-se, porque ambos se apaixonaram. Ele tornou-se o centro do seu universo, pese embora ela saber que o jovem tinha fama de mulherengo. Acabaram o curso e casaram. Diplomata de profissão passaram muitos anos no estrangeiro. Nasceram duas filhas. Durante algum tempo a sua fidelidade devia ter sido real.
Mas ele não era de índole fiel. Um dia prevaricou. E continuou. Achando, no fundo que, à semelhança do que nuitos outros homens faziam, ele podia manter duas vidas paralelas. Só que os tempos haviam mudado e com eles a cabeça das mulheres.
Marta sabia que se havia de vingar. Mas só quando ela achasse mais conveniente. A hora chegou através de um simples bilhete sem data nem assinatura no qual lhe dava conta de que partira levando consigo as filhas e o conteúdo da conta bancária. No fundo, acrescentava, deixava-o exactamente como o encontrara. Sem filhos e sem dinheiro.

Helena

Um homem frágil

Bernardo tinha tudo para ser feliz. Saúde, fortuna pessoal, uma profissão bem sucedida, uma família da qual se podia orgulhar, trinta anos, um belo rosto e um corpo bem trabalhado. Casara relativamente cedo. Ao que, na altura supôs, por amor. A este ter-se-á subrepticiamente juntado o apoio das duas famílias que, deste modo, viam nos herdeiros a junção de dois patrimónios.
O casamento foi tudo o se pode imaginar de melhor, quando se juntam duas famílias da chamada alta classe. A lua de mel, idem. Mas quando esta acabou, a adaptação à vida conjugal não foi fácil. O silêncio ia-se impondo entre ambos, sem que se dessem conta das razões por que tal acontecia.
Qualquer deles estava insatisfeito. Mas Rita decidira que seria algo passageiro, que um filho acabaria por alterar. E esse filho veio. Era uma rapariga.
Mas a criança só veio acentuar o mal estar. Agora falavam. Mas apenas dela. Tudo o resto mantinha-se na mesma. Com as consequências inevitáveis na vida sexual, que não sendo excepcional, era agradável. Podia, mesmo, dizer-se que talvez fosse ela que manteve unido o casal.
O marido não ousava abordar o problema porque, no fundo, não sabia onde ele residia. Só sabia que não estava feliz, que Rita não era a mulher que ele desejava. Mas não tinha alternativa que lhe permitisse ver de onde vinha o falhanço.
Numa tarde, antes de ir para casa, resolveu ir tomar um whisky no bar de um hotel. Apenas para retardar a hora do retorno ao lar. Na sala, numa semi penunbra, o pianista tocava músicas dos anos sessenta.
Estavam três mesas ocupadas. Em duas um grupo de homens conversava sobre negócios. Ou pelo menos era isso que parecia. Na terceira uma mulher tomava chá. Teria, talvez, uns quarenta e cinco anos bem conservados. O olhar era vago, mas o aspecto tremendamente cuidado.
Bernardo decidiu sentar-se numa mesa discreta e relaxar. Mas quando o fez, teve tão pouco jeito que tropeçou e se estatelou - é o termo - aos pés da dita senhora. O chá, esse, derramou-se sobre os dois. Entre desculpas e gaguejos, o nosso homem só queria saber como podia ressarci-la do desastre que provocara. Ela, plácida, respondeu-lhe " se ficar calado já me sinto recompensada".
Bernardo era um homem frágil e esta resposta gelou-o. Se houvesse um buraco no chão ele ter-se-ia metido nele. Mas não havia. Por isso, estoicamente pediu a sua bebida. Que, de facto, o relaxou.
Uma hora passada, a senhora levantou-se e nem sequer para ele olhou. Segundos depois o nosso protagonista tentava saber junto do barman quem ela era. Tratava-se de uma cliente habitual do hotel e, ao que constava, era empresária, e ficava sempre no mesmo quarto.
Bernardo hesitou. Mas um qualquer grito interior de orgulho ferido fê-lo deslocar-se ao quarto em causa. Sem que soubesse para quê. Hesitante bateu à porta, que se abriu.
Quando ia falar, a interlocutora pondo-lhe os dedos em cima da boca, disse apenas "estava à sua espera"!

Helena