segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O passado não volta...

- Não me abandones agora. Deixa-me ficar nos teus braços mais uns minutos. Aperta-me como antes, quando tínhamos dezasseis anos.
- Mas nós não temos mais dezasseis anos, Bárbara. Temos cinquenta e muita coisa passou por nós. Já não somos as mesmas pessoas que então éramos.
- Não é verdade, Tiago. Nós somos os mesmos. O mundo que nos rodeia é que é diferente. O teu coração, que eu ouço, bate como sempre bateu. Os teus braços envolvem-me do mesmo modo e os teus beijos têm o mesmo sabor da adolescência. Será que não sentes a mesma onda de calor que eu, nesta praia onde há tantos anos nos amávamos, neste céu que continua a nos envolver do mesmo modo?
Fica comigo, Tiago, nem que seja apenas por uma noite. Eu quero ficar contigo, relembrar outro tempo, que foi só nosso.
- O tempo que temos já não é mais nosso. O "nosso" é um possessivo que foi verdadeiro. Não é mais. Também a mim me sabia bem recordar a nossa história, descobrir em nós a rapariga e o rapaz que já fomos. Mas para quê?
- Fica comigo, Tiago. Só esta noite. Para que tenhamos uma lembrança viva, actual, do que ainda somos um para o outro.
- Não sei, Bárbara, se "ainda" é um termo que se aplique a nós...
- Se não ficares, Tiago, nunca saberás.

A noite ia longa naquela praia que foi, durante anos, o leito de amor dos dois adolescentes que ambos haviam sido. E onde acabaram por ficar, um no outro, aquela madrugada. 
Levantaram-se e caminharam mãos nas mãos à borda de água. Depois pararam, beijaram-se com sofreguidão e cada um caminhou para o seu carro. Para seguir a sua vida. Mas ambos tinham, agora, uma lembrança mais fresca, intensa, gostosa, um do outro. O que iriam fazer dela, no futuro, seria o segredo de cada um!

Helena


terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Tango

É uma pessoa como deve ser, costumavam dizer dele. Dele, Artur. E tinham, de facto razão. Toda a sua vida fora enquadrada por espartilhos de boa compostura, Um bom filho, um bom estudante, um bom profissional, um bom marido e um bom pai. Quase se esquecera que havia gente que não era assim. Que só era competente numa ou duas áreas. E às vezes até nem isso...
Mas um dia apareceu-lhe uma mulher que todos diziam ser "assanhada". Nem ele bem sabia o que isso queria dizer até a ter conhecido e ter ficado ali, especado a olhar para ela. Especado é o termo porque não conseguiu sair do local em que se encontrava nem se lhe ouviu o vago "prazer em conhece-la" que tentou pronunciar. 
Ao invés, ela nem quase olhou para ele, seduzida que ficou por um argentino que, destacando-se no meio de um salão cheio de gente, pegou nela e de modo inesperado, a levou pelos ares ao som do tango que se fazia ouvir. De tal modo foi surpreendente o gesto, que todos pararam de conversar, lhes deram espaço e ficaram a ver o par deslizar.
Artur teve um impulso louco e, fazendo sinal à orquestra para continuarem a tocar, com um movimento brusco, roubou Penelope dos braços do seu par, tomou-a nos seus e agarrando-a como se fosse sua, levou-ao ar e, competiu com ganho, no tango que se seguiu, corpos colados, pernas em hélice, respiração ofegante, enfim o que se costuma imaginar do "dois em um"... 
Nem ele sabe explicar o que lhe aconteceu. No último acorde, inspiração de um e expiração de outro confundidas, lábios quase unidos, Penelope pára, dá-lhe um estalo e afasta-se a passos largos - deixando-o sozinho no meio da sala -, para se dirigir a Enrique, a quem beijou cheia de sensualidade e olhando Artur com altivez, saíu. Este continuava no mesmo sítio, hirto, olhar estranho, sem se mover.
A musica voltou a fazer-se ouvir, as pessoas voltaram a conversar. Só Artur não conseguia sair de onde estava. Até que a sua mulher, Cândida, pegou nele e começou a dançar. Mas aí, já ninguém se voltou...

Helena

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Quem não arrisca...

Elvira sentia-se muito só. Tinha cinquenta anos e pusera fim a um casamento de trinta.
Os filhos haviam compreendido a sua decisão, mas já tinham família constituída e pouca disponibilidade para se ocupar da solidão materna.
Uma velha amiga, que vivera muito tempo expatriada, dizia-lhe imensas vezes que ela devia ir a uma agência de matrimónios e tentar encontrar a alma gémea. Ou inscrever-se num grupo de danças de salão onde podia conhecer alguém por quem se apaixonasse. De outro lado, sugeriam-lhe cursos de pintura ou de vitrais que podiam ser igualmente locais de apaziguamento do vazio que sentia dentro de si. Mas ela hesitava.
Um dia, no cabeleireiro, viu numa revista um anúncio de alguém numa situação semelhante à dela e que procurava senhora da sua faixa etária para fins sérios. Tomou nota do telefone e depois de vários serões de hesitação resolveu telefonar.
Atendeu-a uma voz fresca, afável, segura, que a motivou. Os telefonemas foram-se sucedendo e Elvira estava no paraíso. Tinha tido uma segunda chance, uma nova oportunidade. Mas impunha-se, ao fim de dois meses de conversa, que se encontrassem.
E foi o que decidiram fazer num determinado dia e em certo local público. Tudo combinado, ela esperou, esperou, mas ninguém apareceu. 
À noite o Miguel - era esse o nome dele, a que acrescentava, como apelido, um sonante Peres de Albergaria - pedia imensas desculpas mas o solar de família, em Santarém, tinha tido uma inundação.
Desculpa aceite marcaram novo encontro numa esplanada no Jardim da Estrela. Ela disse-lhe que iria de amarelo e ele levaria o Expresso com um cravo vermelho dentro. Assim foi. Elvira já não podia recuar perante o homem do cravo, que se erguia para a receber. Homem que, pelo aspecto devia ser pai daquele com quem ela falava. 
Puro engano. Mal ele lhe dirigiu a palavra ela reconheceu o tom e o timbre. Só não reconheceu o rosto que havia imaginado...

Helena

domingo, 13 de janeiro de 2013

Elas não sabiam...

Beatriz, a única das irmãs que ficara solteira - para tia como na família sussurravam -, sonhava o que as restantes, alguma vez, seriam capazes de fazer. As quatro tiveram vidas completamente diferentes. 
Antónia era uma viúva convenientemente chorosa de um marido que jamais amara. Natália era casada e adorava o companheiro que a via mais como amiga do que como mulher. Francisca era divorciada, a primeira naquele clã, e ansiava por encontrar substituto para o lugar deixado vago no seu leito e na sua posição na sociedade.
Todas tinham tido uma história pessoal antes de atingirem o estatuto em que se encontravam. Só de Beatriz jamais se conhecera qualquer rumor e era, até, frequente referirem-se ao facto com comentários mais ou menos jocosos. Aos quais ela sorria, e impassível respondia que "só Frei Bento sabia o que iria no convento".
Não, elas não sabiam. Nem precisavam de saber. Mas os seus sonhos eram carregados de carícias, de beijos, de sexo. Que, durante um ano, ela vivera intensamente. Tanto e de forma tão viva que chegava a acordar com o corpo suado, a respiração ofegante, o gemido arrastado de quem travara dura batalha corporal.
Não, elas não sabiam que o desinteressado marido de Natália, sorvera cada parcela do seu corpo, partilhara com ela os gostos mais extravagantes, segredara-lhe o que jamais a irmã ouvira.
Nenhuma delas alguma vez adivinhara no silencioso marido de Antónia, o fogo consumido pela paixão que votara à cunhada e que havia de o manter feliz até ao dia em que um carro o levara para um mundo melhor.
Porém, havia de ser com Manuel, ex marido de Francisca, que Beatriz viveria a sua derradeira caminhada para o inferno dos sentidos. Era ainda com este que sonhava os seus intensos sonhos eróticos. E com ele que, continuava a encontrar-se, para de cada vez se prometerem, que essa seria a última.
De facto, nenhuma das irmãs conhecera o marido que a vida lhes havia arranjado. Apenas Beatriz, aquela de quem tanto troçavam, os havia verdadeiramente conhecido e, diga-se, bem apreciado!

Helena

sábado, 12 de janeiro de 2013

Uma noite...

Era um fim de tarde de Domingo. Isabel tinha aproveitado a ocasião para arrumar uns papeis. Havia chegado a uma altura da sua vida em que convinha que fosse ela própria a escolher aquilo que poderia, mais tarde, ser visto e mexido por aqueles que cá ficassem.
Foi no meio dessa papelada que surgiu um bilhete amarelado com uma frase em francês, muito singela, que dizia "merci ma chére amie. Vous resterez toujours dans mon coeur"* Viu a data e sorriu. Eram palavras de um verão de 1968. 
Isabel conhecera Jean Luc quando trabalhava num departamento oficial que a obrigava a deslocar-se ao estrangeiro com frequência. Ambos juristas. Ambos casados. Mas a simpatia mútua foi imediata e fortaleceu-se ao longo de meses de trabalho e convívio.
Naquele verão, Jean Luc fora para Estrasburgo de carro. Isabel, como sempre, tomou em Paris o combóio. As reuniões prolongaram-se mais do que era esperado, pelo que a solução seria aguardar pelo dia seguinte. Foi nessa altura que ele a convidou a fazerem juntos, no seu automóvel, o retorno à capital. Ela aceitou.
Teria talvez passado uma hora de viagem quando resolveram parar para comer qualquer coisa. Foi então que algo se passou e Isabel, ainda agora, não sabe explicar o que aconteceu. O clima entre ambos proporcionou que Jean Luc pegasse nas suas mãos, as levasse à boca para as beijar e que ela não reagisse.
Fizeram o resto da viagem enlaçados. Chegados a Paris, criou-se um momento especial quando Jean Luc lhe perguntou o que ela queria fazer.
Sobre o que ela queria, não tinha dúvidas. Sobre o que devia é que as dúvidas eram muitas. Acabou por lhe pedir que a deixasse no hotel. Ele subiu e ela consentiu.
Ainda hoje, tantos anos decorridos, Isabel se lembra dessa noite. Nunca se havia entregue com tanta liberdade a ninguém. E nunca se sentira tão desejada e tão bem amada. Ficou a dever àquele homem um outro tipo de conhecimento próprio. Ele libertou-a de grilhões que, afinal, só a tinham impedido de ser quem era.
Este bilhete foi-lhe enviado dias depois. Isabel está hoje viúva. Jean Luc também. Mas nunca mais voltaram a encontrar-se...

HSC

* "obrigada minha amiga. Você estará sempre no meu coração"

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Acabou, José!

Quantas vezes te terei já dito que acabou? Findou, José, embora tu possas não acreditar. 
Quantos anos levei eu a pedir o teu amor? Quantos anos levei eu a relembrar os teus gestos de carinho, mesmo quando já sabia que eram puramente mecânicos e não traduziam, senão, uma forma de me manteres calada? Foram tantos. Em nome deles vou tentar explicar-te o que se passou.
Quando te conheci não me apaixonei por ti. Apaixonei-me pela tua inteligência, pela tua cultura, pelo teu brilhantismo, por essa tua capacidade de seduzires sem te dares, sequer, ao trabalho de tentar perscrutares quem seduzias.
Para mim era algo completamente novo. Eu saía dum mundo onde as regras para o amor eram o património e o nome de família. E onde a obrigação era tentar que tal sentimento agregasse esses dois pólos.
Tu saías fora deste jogo. Bem sei que a tua família era da chamada alta burguesia rural. Mas tu até te rias disso. Era fácil, aliás. Na vida real, não prescindias dos privilégios. No pensamento, podias dar-te ao luxo de os criticar.
Tantas vezes te chamei a atenção para essa incongruência. Mas tu rias e dizias que eu era reaccionária. Era, de facto. Reagia a esses falsos valores bem apregoados mas bastante mal digeridos.
Foram anos a tentar pensar como tu, a tentar chamar a tua atenção. Foram anos sem o conseguir e a sentir-me como a menos qualificada das criaturas. Porque, afinal, o intelectual, o respeitado, eras tu. Eu era, apenas, a tua mulher.
Até que um dia alguém me disse que tu eras um boneco de plasticina. Que te adaptavas a todas as formas de vida. Que não possuías uma espinha dorsal.
A verdade foi violenta. Não porque, no fundo, eu não a conhecesse. Conhecia. Mas nunca havia tido a coragem de enfrentar a realidade, preferindo transferir para mim a incapacidade de estar ao teu nível.
Foi o princípio do fim, do nosso fim. Hoje quase não entendo como pude anular-me para ganhar o teu amor. 
Não te esforces tu, agora, a ganhar o meu. Não chegas lá, porque o meu mundo nada tem a ver com o teu. E do teu, eu só quero distância. Para poder continuar a ser quem sou.
Acabou, José!

Helena